Para Além de Alqueva

por Mila Simões de Abreu [versão integral de texto publicado na rúbrica "Escavando Online", in Al-Madan, IIª Série, n.º 11: 254-255]

 

"Big dams are monuments to political corruption and power. They are technologically obsolete, ecologically dangerous and economically unviable. They are most devastating. Like a silent war".

Arundhati Roy, escritora indiana, vencedora do Book Prize, 1997

 

 

Introdução

Nunca escondi que pertenci ao grupo, talvez pequeno, daqueles que se opuseram à construção da barragem de Alqueva. Fui contra Alqueva, como sou contra todas as chamadas megabarragens. Criada na visão salazarenta de que barragens eram sinal de progresso electricidade, indústria, Castelo de Bode, Cabora Bassa, energia limpa, reserva de água pura, etc. etc. acabei, com o meu envolvimento no caso da barragem de Foz Côa, por compreender que isso tudo era pura mentira. Barragens de grandes dimensões (mais de 15 metros de altura) são realmente verdadeiras bombas ecológicas. Em diversos países (como a Suécia e a Nova Zelândia) a sua construção foi já posta de parte, enquanto que noutros (Estados Unidos e França) algumas barragens estão já a ser demolidas.

Hoje, mais do que nunca, os vestígios arqueológicos sofrem sobre a pressão dessa certa maneira de ver o progresso. Penso que os arqueólogos, exactamente porque estudam o passado, devem estar entre os primeiros a dar o sinal alarme. É para mim essencial obrigar os Governos a pensarem para além de um horizonte de quatro anos. Sem dúvida, o Futuro deve ser construído noutros moldes e desde agora.

 

Alqueva

A barragem de Alqueva foi um desígnio nacional veja-se sobre o assunto o excelente dossier publicado pelo Público. Criou-se até uma empresa (EDIA) para levar para a frente o projecto. Mas, talvez estranhamente, a EDIA acabou por até se ocupar de outras coisas como a Arqueologia e o Património. Desde sempre muitos levantaram dúvidas sobre o projecto: da viabilidade económica à questão ambiental, passando pelos perigos de uma dupla falha activa (ver notícia 1 e notícia 2). Todos estavam, no entanto, de acordo numa coisa, os impactos negativos deviam ser minimizados. Para alguns a desculpa era que essa era a única oportunidade de se fazer algo pela arqueologia do Alentejo.

Depois de algum tempo de indecisões diversas equipes iniciaram os trabalhos. Na internet surgem pequenas referências às pesquisas, por exemplo, um breve resumo sobre o Bloco 12. Só o grupo da SPEA (Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia), responsável pelo Bloco b1, apresenta descrições mais alargadas sobre os trabalhos. Páginas mais genéricas, como a do GEMA (Grupo de Estudos do Megalitismo Alentejano) dedicaram também algum espaço ao assunto.

É só em Abril de 2001, quando são descobertas gravuras rupestres nas margens do Guadiana, em território português, que explode verdadeiramente no ciberespaço o caso "arqueologia Alqueva". A web enche-se por um lado de pequenas noticias (ver notícia 1 e notícia 2) e por outro de comunicados e desmentidos (ver texto 1 e texto 2). Aparecem os primeiros protestos internacionais.

Tracce, o boletim de arte rupestre on line da Cooperativa Le Orme dell’ Uomo, da Itália dedica ao Alqueva/Guadiana um número especial. Aí é possível aceder a numerosas informações sobre a barragem, os problemas económicos, o impacto ambiental e claro, as gravuras. São comunicados, imagens, textos científicos e é até um Fórum de discussão online.

Manuel Caldado e o grupo que identifica as primeiras gravuras do lado português, coloca também na web imagens e pequenos textos. Essas informações acabam por ser transferidas para um site especifico e com grande qualidade estética (ver site 1 e site 2). Internacionalmente o protesto espalha-se. Referência à descoberta e à possível destruição das gravuras são colocadas no ciberespaço por organizações como, a IFRAO e o Centro Universitario Europeo per I Beni Culturali.

Em Julho um grupo internacional de investigadores cria uma petição pedindo ao Governo Português e a União Europeia a suspensão dos trabalhos todos até que a prospecção seja concluída. Mais de 2500 pessoas de mais de 50 países assinam (continuam a assinar) tal abaixo-assinado. Tal como quando foi do caso do Côa entre elas encontramos tanto os maiores especialistas na matéria como estudantes e até crianças. Todos uniram-se no desejo de dar uma nova oportunidade ao estudo e à preservação do Vale do Guadiana.

Nos meses que se seguem são postos online uma série de artigos sobre a polémica descoberta das gravuras e a sua iminente destruição (ver artigo 1, artigo 2 e artigo 3). Para descarregar alguns desses documentos é necessário ter PDF ou então traduzi-lo para html usando, por exemplo, um motor de busca como o Google. Aliás no Google seleccionando na página inicial "imagens" e fazendo a pesquisa com a palavra Alqueva encontram-se quase 400 fotografias, gráficos e desenhos da barragem e o património que vai desaparecer. Outras imagens sobre os monumentos e os sítios arqueológicos podem ser encontradas na página da EDIA ou na do Grupo Jovem Estudos Arqueológicos Coimbra.

Desde Abril de 2001 o site oficial do IPA apresenta notícias, relatórios e comunicados sobre as descobertas. Com passar das semanas, e talvez devido à pressão internacional das diversas missões que se deslocam à zona de Alqueva, o ex-presidente do IPA começa a utilizar a página oficial para difundir textos seus em tons difamatórios. Usando indevidamente o nome do Governo (mais tarde corrigido para "posição do IPA") insulta colegas e organizações internacionais. Protestos contra essas palavras são apresentado até por via diplomática e depois de algumas meses algumas das acusações tivessem direito a resposta. O site oficial dá relevo só alguns. Tal como tinha acontecido no caso do menino do Lapedo, as respostas aos insultos dos colegas internacionais (por exemplo Jean Clottes) ficam na gaveta e nunca são publicadas online. Por fim, já em 2002, essas palavras do Sr. ex-presidente. foram retirados da página do IPA. Elas porém não desaparecem do ciberespaço. Alguns desses textos podem ser importantes para a reconstrução histórica do que se passou. Quem estiver interessado visite, por exemplo, o site da  Sociedade Portuguesa de Espeleologia, leia algumas das mensagens da lista de discussão ACRA, vá ao site Alqueva story ou à página Save Guadiana rock art. O debate tornou-se aliás tão interessante que o Departamento de Arqueologia da Universidade de Glasgow apresentou-o como proposta de tema, no âmbito da discussão sobre arqueologia na sociedade contemporânea.

Quando, em Fevereiro de 2002, foram fechadas as comportas de Alqueva, esse debate não acabou. Aos protestos dos ambientalistas juntaram-se as preocupação pelo futuro do património arqueológico (ver notícia 1 e notícia 2) e fizeram noticia, não só no nosso país.

 

Sabor Amargo

A terrível combinação entre barragens e destruição de estações arqueológicas parece não querer parar. Desde 1987 que se fala da construção de uma outra barragem - dita "das Laranjeiras", no rio Sabor, próximo do Douro - e do impacto negativo que se for para a frente ela terá. As recentes descobertas de arte rupestre, em estilo Paleolítico, do vale do Sabor levam-nos a pedir, desde já, que não se volte a ter aqui um novo Côa ou Alqueva.

 

No resto do mundo 

Não é, porém, só no nosso país que o património arqueológico corre perigo com a construção de megas barragem. Na Turquia o governo está a fazer o possível para tornar o país num imenso lago. Debaixo das águas de barragens com a de Ilisu estão a desaparecer milhares de sítios arqueológicos (ver notícia 1 e notícia 2). Um importante núcleo de mosaicos romanos foi descoberto a poucas semanas da conclusão da barragem Birecik. Zeugma, uma verdadeira segunda Pompeia, acabou debaixo de água (ver notícia 1 e notícia 2).

Na Índia os habitantes da zona afectada pela barragem de Narmada não desistem de lutar para salvar a sua terra e seu património. Protestos tem acompanhado deste sempre o projecto da barragem das Três Gargantas (Three Gorge Dam) (ver notícia 1 e notícia 2), na China mas poucos no Ocidente conhecem um outro projecto, no rio Hanjiang, que vai inundar uma área de 370 km2 onde já foram encontrados fósseis humanos com mais de 800.000 anos. Também noutros continentes devido a construção destas mega-barragem, o ambiente e o património estão a pagar, ou vão pagar, um preço muito elevado. É o caso da arte rupestre com projectos como, por exemplo, o das terras altas do Lesoto, em África ou dos vestígios pré-colombianos, na bacia do rio Usumacinta, numa vasta zona situada entre a Guatemala e o Sul do México.

Quando se fala de barragens e de arqueologia muitos são os que se lembram do caso da barragem de Assuão (ver notícia 1 e notícia 2) e do templo de Abu Simbel (ver notícia 1 e notícia 2). No início do anos sessenta, durante a construção dessa enorme barragem no Nilo, o templo foi cortado e levado para for a do alcance das águas, graças a uma campanha internacional. Infelizmente, como era previsível, a falta de sedimentos acabou por ter consequências desastrosas na fertilidade de quase todo o Vale do Nilo. Poucos sabem que Assuão é hoje um inútil elefante branco…

Mas se as entidades governamentais e companhias construtoras são poderosas, os grupos de contestação, tem nos últimos anos, adquirido um estatuo que começa permite-lhes estarem sentados à mesa das decisões. Para saber mais sobre o assunto aconselho uma visita à magnifica página da Comissão Mundial sobre Barragem (World Dam Commission) das Nações Unidas. Diversas organizações tem páginas sobre a luta contra as grandes barragens, tal é o caso da earthdaynetwork ou InWEnt. Em países como o Brasil, o problema é tão grave que até existe uma organização de apoio aos desalojados, muitos deles pertencentes a grupos indígenas, e até na nossa vizinha Espanha foi criada já uma entidade que coordena todos os que foram afectados por tais empreendimentos.

 

Dams are not forever 

Contrariamente ao muitos pensam as barragem são na verdade construções muito provisórias. Para a maioria dos especialistas elas tem uma vida de aproximadamente 50/70 anos. Diversos países estão já a desactivá-las e outros a pensar o que fazer depois na sua "morte". Os arqueólogos devem, talvez, também ter em mente esses factos.

 

A arqueologia e os rios 

Se as mega-barragens têm nos últimos anos destruído muito património arqueológico e posto em perigo o ambiente e as populações, não devemos esquecer que parte do problema está na maneira como temos encarado os nossos rios. Sobre as bacias hidrográficas em geral e a importância da água, no presente e no futuro, vejam a página do International Rivers Network. Para a Península Ibérica, e com diversas referências a Portugal, consultem o site do European Rivers Network, que inclui até uma secção dedicada ao Guadiana e a Alqueva. Ver os rios do ar pode ter grande interesse para a investigação arqueológica para ter uma ideia das possibilidades vale a pena dar uma vista de olhos por páginas como a do PSB ou a Rivers from space.

 

Arqueologia em perigo 

Todos sabemos que não são só as barragem que põem em perigo o nosso património, a World Monument Watch faz todos os anos a lista dos sítios mais ameaçados. O vale do Côa já lá esteve, o que prova que este tipo de acções mais mediáticas podem ter bons resultados. Arqueologia em perigo (Archaeology under threat) é uma página que, embora não tenha sido actualizada de recente (fica-se pelo ano 2000), tem informações interessantes sobre o assunto.

Alguns países, como o Reino Unido, tem feito um esforço para ter a noção do que está realmente em perigo. Em 1994 foi criado MARS (Monuments At Risk Survey) um projecto que tinha como objectivo, não só, fazer a lista do que estava ameaçado mas também preparar linhas de actuação para o futuro. Em Portugal, por exemplo, a Universidade do Algarve produziu um documento disponível na web em formato PDF sobre a situação actual da arqueologia e do património arqueológico no Algarve.

As relações entre o chamado desenvolvimento e a arqueologia foram objecto de uma reunião cientifica organizada por Mark Stedman and Chris Woodford, em 1997, da qual é possível consultar online alguns dos textos. Do mesmo autor do Archaeology under threat existe um site com informações mais gerais sobre essas relações. E sempre na web é ler dois pequenos guias muitos úteis Archaeologists campaigning for the environment e Envionmental campaigners' guide to archaeology. Sempre no mesmo site, sigam os diversos links sobre arqueologia e desenvolvimento. E porque não basta só ler e conhecer mas também participar convido todos a assinarem a petição para a salvaguarda da arte rupestre de Dampier, uma enorme área principalmente com gravuras, na costa ocidental da Austrália ameaçada por um complexo petroquímico.

 

As melhores do Ano 

Por fim, o título da melhor página do ano a nível nacional, vai ser dividido para duas das já citadas: Alqueva Arqueologia (gráfica e conteúdos) e Grupo Jovem Estudos Arqueológicos Coimbra (simplicidade e utilidade). Não posso deixar de fazer uma referência à nova versão da página do CEIPHAR (Centro Europeu de Investigação da Pré-História do Alto Ribatejo) muito bonita, em com um fórum de discussão sobre arte rupestre.

A nível mundial a palma vai para Apeman da homónima série da BBC recentemente transmitida em Portugal e, embora sem ser estritamente de arqueologia, para a magnifica Tempus Fugit.

 

Como sempre fico a espera das vossas sugestões

 

Boa escavações!

 

Mila Simões de Abreu (msabreu@utad.pt)

 

PS. Todas as moradas estavam activas em 5 de Dezembro de 2002

 

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